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sexta-feira, 24 de junho de 2011

O cinismo espeta a verdade

     Já fui paciente. Inclusive em hospitais e clínicas, que exigem estrema paciência por parte de quem chega por lá. Já fui paciente; do verbo não sou mais. Meu pavio, nos dias mais coloridos, dá para ser medido em milímetros. Talvez por isso, começo a perceber que enclausuro a voz. As palavras, no recrudescer da impaciência, calçam arame farpado, vestem manto de urtiga e esmurram feito Mike Tyson no auge da carreira. Chegando, inclusive, a investir à dentadas sobre um distraído ouvinte. E para domar a impaciência, essa hiena, ignoro. Ignorando, brinco. Brincando não levo a sério - falando nisso, também já fui sério. E gargalho. Sorrio da sisudez. Com um cinismo que espeta a verdade de quem insiste em saber mentir. E minto também.

     Já fui verdadeiro. Até mesmo com mentirosos inveterados que pediam para que eu dissesse a verdade. Com o tempo fui aprendendo que a verdade, assim como a felicidade, é uma arma branca – amolada como navalha de exímio barbeiro, corta a carne alheia, embebe-se do rubro líquido irmão. Não deve ser entregue, essa peçonha, a qualquer noviço. Seria maldade não mentir. Já imaginaste, paisano, o mal que provocaríamos ao dizer que está feia uma debutante? E afirmar uma asneira dessas a uma noiva de véu e grinalda? É imperioso, em ambos os casos, que se minta. E há, adianto, uma dantesca distância entre um mentiroso e um cara que mente. O primeiro não sabe ler, ou não lê nada. Se lê, desconhece as minúcias de um texto bem escrito. Está em trevas. O segundo, o cara que mente, está em pleno processo evolutivo. Navega em águas profundas e sabe que todo cuidado é pouco para não naufragar. E ser verdadeiro com tudo e com todos é ter a certeza que vai terminar os dias no fundo do mar.

     Alguém que você conhece, simpatia, não mente? Algum sábio sobre quem você já investiu tempo lendo não mentiu? Aponte-me um humano, até mesmo o mais religioso deles, que não mentiu. Já que não encontrarás dois na história, aponte-me, peço, um. Conheço certos homens apaixonados pela causa divina que acharam uma expressão para justificar o ato de mentir: “Que isso, Gilead, o que Fulano fez foi esconder a verdade; ele seria incapaz de mentir”. Sei, sei,sei. Já fui verdadeiro.






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