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terça-feira, 4 de outubro de 2011

Confissão de um assassino


     Traí e matei meu amigo. É uma confissão forte, mas é preciso que seja feita. Confessando, alivio o peso da culpa que faz este nordestino ficar mais por baixo do que torcedor do Avaí. Trair quem se gosta, em si já é um assassinato; tirar a vida, no entanto, é o último estágio que leva um filho de Adão a ser semelhante ao protozoário. Domingo, sete da manhã. Cai uma garoa no Três Platôs. Dois homens chegam em frente à porteira e chamam: “Julliard?”. Desço até lá e abro o cadeado que impede o acesso deles ao sítio. Munidos de cordas, vêm buscar Pirata, Gerineldo e Mel. Os três estão pesados demais e tornaram-se inadequados para o solo cheio de altos e baixos da propriedade. Estranhando a presença, os animais ficam a distância. Olham desconfiados. Pirata está com três anos. Comprei-o quando tinha seis meses. Era osso e couro. Ah, e dois projetos de chifres. Semimorto, de vida só possuía os carrapatos que cobriam-lhe como se fosse uma manta. Uma olhada mais examinadora revelava por completo o estado do boizinho – bernes refestelavam-se em sua carne. Dias foram preciso para que ele permitisse minha aproximação. Já desverminado, livre dos carrapatos e dos esfomeados bernes, aos poucos viu em mim um amigo. Dei-lhe casa confortável, comida de primeira e a companhia de outros bovinos – entre eles a Mel e o Gerineldo.

     Sempre que eu chegava ao sítio, ele me saudava com um berro; independente da hora. Não satisfeito, saía em desabalada carreira na minha direção. Nunca, nunca teve um ato de agressividade para comigo. O que ele não imaginava – e nem eu premeditara, juro – é que ao ficar bonito e grande seria incompatível com o lar onde morava. E nos doze graus da manhã acinzentada de domingo chamei-o pela última vez: “Pirata, ô Pirata, vem cá, vem”. E ele veio. “Se o meu dono me chamou é porque não corro perigo”, tenho certeza que imaginou. Como um político que recebe votos de cidadãos e depois os esfaqueia em troca de punhados de dinheiro sujos, passei a corda nas guampas de Pirata. Mel e Gerineldo tiveram o mesmo tratamento. Eles insistiram em ficar. Era como se estivessem dizendo: “nosso lar é aqui, não queremos ir embora, muito menos com estes homens que não são íntimos nossos”. Fechei-me dentro de mim e fechei a porteira para nunca mais vê-los.

     E quando eles sumiram na curva da estrada senti como se estivesse perdendo partes de mim. Mel, bonita e de boa linhagem, será usada como reprodutora, imaginei. Gerineldo, touro, na certa terá vida longa. Pirata, entretanto, por ser boi será abatido, concluí. E chorei por dentro, talvez com vergonha de me derramar em lágrimas por causa de uns quadrúpedes. Mas eu sabia que eles eram mais do que animais. Pirata era um amigo. Conversava comigo. Quem o conheceu sabe que não minto. Hoje, porém, tive a notícia: “matei o Pirata”, disse o comerciante que o comprou no domingo chuvoso. Foi como um tiro à queima-roupa. E senti a dor de ter traído e matado um amigo. Sinto-me igual ao administrador público que não investe em saúde e deixa que os seus eleitores morram à míngua em corredores imundos de hospitais desaparelhados. Assim como o prefeito, o governador e o presidente matam o munícipe, matei Pirata.

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