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segunda-feira, 26 de abril de 2010

Amizade que vem de cima

          Toda vez que passo ele está lá. Confesso que fiquei curioso nas primeiras vezes que vi a cena. Com o tempo fui me acostumando com a ideia e passei a admirá-lo. E, você sabe, simpatia não brota do asfalto. Não surge de uma hora para a outra, como a paixão. Não aparece de subto, feito visita inoportuna. Não vem sem ser convidado, feito cunhado em festa, ou sogra em almoço. Não se manifesta de supetao, feito guarda de trânsito. Admiração é algo mais cadenciado. É paulatina. É calma. Parece com uma linda roseira. Um dia foi semente. Um dia germinou. Um dia brotou. Cresceu. Floresceu. Que belas rosas! Mas toda vez que passo ele está lá. Em cima da casa.

          E me olha. No início me encarava com os dois olhos. Fitava-me sem amizade alguma. Talvez por medo. Talvez por considerar que eu o discriminava. Ou, talvez, fosse por pura falta de afinidade. Aos poucos foi economizando o olhar. Bastava um olho, o esquerdo, para acompanhar minha passagem. Descobri, assim, que ele era canhoto. Agora o emudecido me espia com um pequeno pedaço do olho esquerdo. E já acredito que somos amigos. Uma amizade nutrida pela compreensão mútua. Mas toda vez que passo ele está lá. Na solidão do telhado. Eu nunca tive vocação para dentista. Quando nasci, o patrão da minha alma orientou-me: “Nada de ser dentista, hem, rapaz.” Mas o meu amigo, o do telhado, cismara que eu era um. Sempre me mostrava os dentes. Mas isso são águas passadas.
          A verdade é que entre nós surgiu uma amizade sincera, cultivada no rico solo da admiração. Às vezes fico duas, ou três, semanas sem passar em frente ao seu eirado. É aí que percebo a cumplicidade que há entre nós. Um dia desses, após uma quinzena distante, vi-me perto de sua morada. Atentei que ele não estava sobre o telhado. Fiz de conta que não notara. Ele, lépido e faceiro, subiu na casa. Continuei fingindo não ver. Quando cheguei bem em frente ao seu mirante particular ele bradou quase silenciosamente: “Au, au”.

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