Segunda feira, 6h da madrugada. O sol já não era mais nenhuma novidade quando chegamos em Santa Cruz, cidade separada de Natal por 100 quilômetros de asfalto da BR-226. Que, para alegria dos motoristas, está parecendo uma mesa de bilhar. Tudo bem, tudo bem, nem tanto, mas não tem um buraquinho, sequer. Passáramos por Bom Jesus, Serra Caiada e Tangará. Dois ou três milhares de metros antes de descortinar Santa Cruz, já podíamos ver a imagem de Santa Rita de Cássia. O Auto de Santa Rita de Cássia é a maior imagem católica da Terra. Seus 56 metros inaugurados em 2010 fazem o Cristo Redentor, por exemplo, parecer um nanico. O fato é que o município entrou para a rota dos romeiros que abundam por estas pairagens devoradas pela seca. Como cantavam - nem sei se cantam mais, meu Deus! - o Ultraje a Rigor, "dinheiro". "Não seja incréu, Gilead; não desmereça a fé do povo", dirá o mais apegado às paixões da alma. Nesse caso, tenho que erguer os dois braços e capitular: realmente, se não fosse a fé do sertanejo a vida seria bem mais dura do que já é.
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Maior monumento católico do mundo |
Uma hora depois, paramos para tomar café em Acari, cidade afamada como a mais limpa do Brasil. Não há sujeira alguma nas ruas. Parece que nem tem fumante lá, porque não vi uma bituquinha, ao menos, jogada na sarjeta. E vamos combinar, fumante que é fumante não está nem aí para o politicamente correto. Ele descarta o resto do vício na rua e quem quiser que ache ruim.
Nosso giro pelo Sertão nos empurrava para Carnaúba dos Dantas, na divisa com a Paraíba. O calor já não permitia brincar de abrir a janela do carro. Urubú por aqui, meu chapa, voa com uma asa só; com a outra se abana. A paisagem calcinada, no entanto, enche os olhos de quem está sob a proteção de um ar-condicionado.
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Serra Rajada |
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Telha e tijolo, isso dá |
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Onde os fracos não têm vez |
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Dá pra ver a casinha? Morar aqui é não exigir muito da vida |
Carnaúba é outro polo de turismo religioso. O Monte do Galo, com as 14 estações da chamada Via Sacra, é destino certo de milhares de romeiros que correm em busca de dádivas celestiais. Ao pé do santuário, anualmente é feita a celebração da Paixão de Cristo. Os atores, vale o destaque, são todos do lugar. No alto do monte, os moradores juram que tem um galo de 5 toneladas. Mesmo sendo igual goiano, que "gosta de pegar pra saber se o trem é bom", preferi acreditar à subir a sauna.
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Monte do galo |
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No alto, um galo de 5 toneladas |
Ao pegar a estrada para Picuí/PB, ainda em Carnaúba, uma construção no lado esquerdo da rodagem chamou nossa atenção. Era um castelo. Um castelo, sim senhor. E o edifício foi usado como cenário do filme O homem que desafiou o diabo.
Ao entrarmos no Estado vizinho, uma surpresa que nenhum motorista gosta: restos mortais do que um dia foi asfalto misturavam-se com areia. Peeeeeeeeeeeeeeense numa buraqueira. Num pedaço de Brasil dominado pelo sentimento de religiosidade, aí sim precisei exercitar minha fé: fé para fazer o possante terminar bem a viagem. A solução é ter agilidade no braço, boa visão para escolher a passagem menos ruim e exagerar na fé. Porque a fé, "cumpade", a fé não costuma falhar. Picuí. Meeeeeeeeeeeeeeeeeeu Deus. Ah um prefeito naquele lugar.
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Picuí/PB |
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Tem mais moto do que gente; já capacete... |
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Bem vindo a Picuí - Entrada da cidade |
Buraco para um lado, Gile para o outro, Buraco para cá, Gile para lá, era preciso encontrar a entrada para Nova Floresta. Parei numa das raras casas que margeiam a trilha - e sou capaz de xingar quem chamar aquilo de estrada - e um morador, rapaz de seus 30 anos, saiu para me atender:
- Bom dia, amigo.
- Bom dia- respondeu o paraibano.
- O senhor sabe informar onde fica a entrada para Nova Floresta?
- Huuuuum, huuuuuuum, o sinhô sobe, quando descer... aí sobe de novo, aí...
- Na segunda descida, é isso? - interpelei.
- É, é... - e olhou para dentro de casa como quem pede ajuda.
Outro moço, que parecia irmão, acudiu confirmando o que dissera o primeiro. Mais cinco minutos e encontrei o acesso. Dez quilômetros de estrada de terra nos conduziram à casa de Antônio e Francisca, na localidade de Pedra D'água, já no município de Nova Floresta. O sertão perdera um pouco da carranca. Podíamos ver cajueiros, coqueiros e outras árvores odiadas pelo solo sertanejo. A sisterna atrás da residência, no entanto, indicava que a seca era o inimigo a ser batido. A simplicidade, o carinho e o riso nos serviram um almoço com muita carne, arroz de forno, feijão, salada e suco. Fiquei apenas no arroz de forno e na água de coco. Seu Antônio mostrou-me como faz para alimentar o gado naquele pago tão carente de verde. Uma carroça de burro - veículo comum na região - cheia de palma estava encostada próximo ao galinheiro. "Eu passo tudo na forrageira e dou pro gado; é assim que dô cumida a eles. Planto também um tiquinho de capim elefante pra misturar".
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Sr. Antônio |
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Sisterna é bem de primeira necessidade |
Antes de partir, soube que na casa contígua morava um ex-combatente. André Ernesto, 90 anos, é conhecido na comunidade pelas tiradas mal-humoradas que costumava responder a interlocutores incautos. "Uma vez", riu dona Francisca, "ele subiu em cima da casa e um vizinho perguntou se ele estava arrumando o telhado, ele disse 'não, estou cavando uma cacimba'". Lúcido, o velho militar apenas sorria quando invocavam suas memórias.
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André Ernesto |
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O quadro na parede da casa é o orgulho do ex-combatente |
Mais oito quilômetros de estrada de terra. Melhor, bem melhor do que o asfalto paraibano que -"não"- encontrei, e cheguei à sede do município de Nova Floresta. Sem precisar passar a terceira marcha, atravessei o povoado em dois minutos. Um pórtico em construção e um placa ondicavam que estávamos retornando ao Rio Grande do Norte, agora pela cidade de Jaçanã. Um passo pra cá, Paraíba, um passo pra lá, Rio Grande do Norte. Outra vez o asfalto sorriu para nós. Já era noite, apesar de o relógio marcar apenas 18h, quando chegamos em Natal. Foram 500 quilômetros de estrada boa(RN), estrada ruim(PB) e estrada horrorosa(PB). 500 quilômetros de sertão, de força para viver em terras tão malvadas, de obstinação para vicejar onde os fracos não têm vez.
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É claro que o que conto
aqui são apenas impressões superficiais de um viajante. Ficaria muito
feliz, contudo, se a assessoria de imprensa da prefeitura de Picuí
entrasse em contato comigo e informasse que o prefeito acordou e vai
fazer alguma coisa pelo município que comanda