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terça-feira, 3 de maio de 2011

Flores, política, religião e Ernest Hemingway

    Não, não me peça para falar de flores. Não, porque as lagartas precisam delas. Falar de flores é louvar as lagartas. Sim, eu sei, os beija-flores não merecem meu não. Adoro os pequeninos alados, e sei que as flores fornecem-lhe o alimento diário. Mesmo assim, prefiro o jardim sem lagartas. Ainda que meu ato represente o fim dos colibris, das flores e até mesmo do próprio jardim. As insaciáveis lagartas fazem as lindas flores desaparecerem em segundos. Elas formam uma legião de destruidores de canteiros. Apossam-se das floreiras com uma sede de extermínio semelhante a do exército Hitlerista. Empanturram-se do néctar que o semeador acreditou ser exclusivo dos cuitelinhos. Quando estes chegam com suas asas ultra velozes, só encontram restos dos talos que um dia hastearam flores, rosas e crisântemos. Ah, veem, por mais triste que possa parecer, hostes de pançudas lagartas refesteladas deslocando-se para novas flores que um sonhador plantou. Não me peça para falar de flores.

     Não me peça para falar de flores se não queres ouvir de lagartas. Não que eu tenha perdido a capacidade de sonhar, meu Deus do céu. Tivesse essa desgraça acontecido, eu seria um morto vivo, um zumbi, ou coisa do gênero. Só não posso me dar ao luxo de dormir enquanto lagartas vorazes dizimam meu jardim. Nem muito menos acreditar, como querem alguns, que as lagartas fazem parte de um processo natural. Para lá com essa conversa fiada. Coloquemos nossos sonhos na mochila e sigamos adiante. Chegará a hora de abrirmos. O momento, no entanto, é de agir. Capitais brasileiras, tidas como evoluídas social, financeira e culturalmente, tornaram-se ninhos de neonazistas que matam minorias. Câmaras municipais, estaduais e federais converteram-se em covis de salteadores do nosso rico dinheirinho. Lares, ou o que restou deles, viraram centro de consumo e distribuição de tóxicos e entorpecentes. Instituições religiosas, que até poucos anos algumas serviam para salgar a sociedade, estão gangrenadas por charlatões, hienas da fé e corruptos a serviço da politicagem purulenta. Não me peça para falar de flores.

     Não me peça para falar de flores se teus ouvidos são insensíveis a dor de quem chora em um corredor de hospital. Que sofre na madrugada de um pronto socorro por não ter um médico para atendê-lo. Sofre por não ter um leito. Sofre por não ter remédio. Porque o dinheiro para suprir tais necessidades paga a cocaína de políticos indecentes e criminosos. Compra o uísque que ajuda a embalar as noitadas de assassinos travestidos de defensores da sociedade. Pagam o motel e as meretrizes usadas por vereadores, deputados e senadores. Falar de flores quando crianças descem à sepultura por falta de alimentação? Porque empaletozados furtaram-lhe o direito à merenda? Falar de flores quando o assalariado paga imposto de renda, e o dono de iate gaba-se da restituição a que teve vez? Falar de flores quando a realidade se torna cada dia pior? Falar de flores quando a justiça é pervertida por bastardos julgadores comprometidos com a mentira? Falar de flores quando o “defensor da liberdade” aponta um míssil para quem empunha um bodoque? Lembro das palavras de Robert Jordan, personagem principal do livro Por quem os sinos dobram de Ernest Hemingway: “O mundo é um bom lugar e vale a pena lutar por ele, e odeio ter que deixá-lo”. Lutemos agora, antes que as lagartas nos destruam e nos sepultem sob o que restar do nosso jardim.

3 comentários:

  1. Dessa vez você se superou. Parabéns pela sua capacidade de se indignar e pela forma como colocou sua indignação. Acertou na mosca, ou melhor, nas lagartas...

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  2. "colocar nossos sonhos na mochila" foi ótimo, embora triste. dormi pensando nesse teu texto cara.

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  3. Gostei Gileead. Que Deus a cada dia aperfeiçoe o dom de realmente saber fazer uma crônica.Um abraço, Dickson, Nata, RN.

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