O vereador sobe à tribuna. Os companheiros de profissão ficam de olho. E aí ele comete o primeiro pecado: traz à tona um projeto de lei que regulamenta a profissão de motoboy em Florianópolis. Um dos fazedores de lei municipal levanta-se da mesa posicionada no ponto mais alto da casa. Badeko é o nome do cidadão; nome de guerra, digamos assim. Ensacado num terno cuja calça parece ter cinco números a mais do que quem a usa, desce e dirige-se a um camarada dele. Não sabendo que é, no mínimo, falta de educação dar as costas a um pregador, faz isso sem o menor constrangimento. E ri. A boca solta atropela quem está fazendo uso do microfone. Para piorar, o afrodescendente furta a atenção de outros dois políticos. A essas alturas, Márcio de Souza, outro afrodescendente, tenta discursar. As palavras chegam aos olhos de não mais que quatro membros da câmara. Márcio persiste, argumenta que a necessidade da regulamentação de uma categoria como a dos motoboys é mais do que necessária, até porque já existe uma lei federal fazendo isso. Basta a câmara de vereadores municipalizar a lei. A luta é vã. Badeko sai do plenário. Quem sabe foi ao banheiro. Certas coisas é melhor fazer do que ouvir um companheiro fazer.
Márcio de Souza não desanima e insiste em pecar. Apresenta números, estatísticas que comprovam a quantidade de motociclistas que morrem diariamente na capital de Santa Catarina. Alerta que o poder público pode fazer alguma coisa, e para começar a fazer a regulamentação da categoria é o primeiro passo. É a vez de levar outra “costada” na cara. João Amim é o nome da fera. De cenhos franzidos, o filho do ex-governador Esperidião Amim parece ter odiado o assunto. “Que diferença entre ele e o pai, hem?”, resmunga Pedro Luis Sabaciauskis, presidente da associação de motociclistas Amofloripa, que estava entre as cinco almas abnegadas que enfrentavam os 14 graus da noite florianopolitana. “Antes de começar a seção, fui falar com ele e ele me deixou falando sozinho”, reclama o empresário. “Não foi nem um pouco simpático. Tem muito o que aprender com o pai. O pai dele recebia até os adversários com um sorriso”, critica Sabaciauskis. Se, como diz Pierre Weil, o corpo fala, o de João Amim parece deixar claro que está incomodado com o discurso sobre motociclistas. E ele não está sozinho nessa incomodação. A lei No 12.009, de 29 de julho de 2009, sancionada pelo então presidente Lula, não sensibiliza os mandatários do Sul brasileiro. Vale salientar que a lei é federal e cada cidade é responsável pela sua municipalização. Até o momento o Centro-Oeste lidera o ranking de municipalização – 17,8% dos municípios já o fizeram. O percentual no Sul é de míseros 4,9% - o pior entre as regiões do Brasil. “Que morram esses motoqueiros danados”, parece ser o clamor surdo dos chefes políticos catarinenses.
Sensibilizado com tantas mortes de motociclistas, Márcio de Souza pede que o projeto de lei apresentado por ele volte à comissão de constituição e justiça da Câmara. O tempo de Márcio estoura. "Chega de pecado", esbraveja o relógio. João Amim, finalmente, pôde girar a cadeira e voltar a olhar o púlpito. Badeko vê-se livre do falatório de Márcio e consegue respirar outra vez dentro do plenário. Antes, porém, é interceptado por Pedro Sabaciauskis. “Deixa que eu vou pegar essa (...) e vou fazer passar”, retruca indignado o vereador, quando Pedro questiona o descaso dos vereadores com a lei que regulamenta a profissão de motoboys. Ah, antes disso, a Câmara prestou farta homenagem a uma rede de comunicação de Florianópolis da qual Badeko é funcionário. Parece que tudo uma questão de prioridade. “E as mortes de motociclistas?”, pergunto, “não merecem a atenção dos nossos vereadores”?
Enquanto me retiro, uma voz malina sopra nos meu ouvidos: "O que João Amim e Badeko querem é que Márcio de Souza retirem o projeto para eles poderem apresentar". Nego-me, juro, a acreditar que uma coisa dessas seja verdade. Se bem que, como disse Berthold Brecht certa vez: "As leis e as salsichas, é melhor não saber como são feitas".
Nenhum comentário:
Postar um comentário