Morro do Mocotó, falta lazer, sobra pó

          Trinta e oito minutos jogados no segundo tempo de partida. O placar do estádio Orlando Scarpelli aponta: Figueirense dois, Marcílio Dias um. De repente o lateral esquerdo do Marinheiro – apelido carinhoso do Marcilio Dias - arranca em diagonal pela entrada da área do Figueira e solta uma patada certeira. É o gol de empate. O nome do lateral: Eli Lopes. Quando foi esse jogo? Em 1977 e foi válido pelo campeonato catarinense. Agora, adiantemos o relógio do tempo. São 14h do dia quatro de novembro de 2009. Estou no Morro do Mocotó, mais precisamente no lugar chamado de Boca do Vento, na região central de Florianópolis. É onde mora o ex-jogador de futebol. Eli está com 60 anos. O que faz? Entre outras coisas é presidente do conselho comunitário do Morro do Mocotó.

        Digo, entre outras coisas, porque ser presidente de Conselho Comunitário não garante o pão na mesa de ninguém. Não existe salário, apenas alguma ajuda de custo. Então, por que salientar essa atividade? Porque é o que mais dá prazer ao avaiano Eli Lopes( foto). Ele é funcionário da Prefeitura de Florianópolis, mas nunca cita esse emprego quando é perguntado sobre o que faz. Quando pendurou as chuteiras, em 1986, estava jogando em Xanxerê, Oeste de Santa Catarina. Tinha 29 anos. Continuou morando por lá. Ficou alguns anos e não resistiu a saudade, voltou para Florianópolis. Direto para o Morro do Mocotó. Eu sou Mocotó”, orgulha-se. “Nasci, cresci, me casei e quero morrer no Mocotó”, complementa.

          Em 2001 foi convidado para assumir a presidência do Conselho Comunitário. “O conselho estava caído”, esclarece. “Hoje temos a Casa Brasil e o Centro de Convivência”. A Casa Brasil é um espaço onde funcionam salas de informática – com 42 computadores -, clube de mães e aulas de luta. O local funciona em três turnos, de manhã e à tarde é destinado às crianças. À noite quem usa são os adultos. O Centro de Convivência fica no ponto mais alto do morro e é onde ocorrem as festas da comunidade, desde aniversários até casamentos. Inaugurado em 2006, foi a maior vitória que esse sexagenário teve, até aqui, pelo Mocotó.

         Eli Lopes (na foto à esquerda) começou a carreira nos juniores do São Paulo como atacante. Foi contratado pelo Avaí e jogou no “time do Guga” durante quatro anos. Durante um jogo entre o time catarinense e o Botafogo, no Rio de Janeiro, Eli – que estava no banco de reservas – foi solicitado pelo técnico para entrar em campo. “Não quis, faltavam cinco minutos para acabar e o Botafogo vencia por cinco a um, o que eu ia fazer”? Foi o suficiente para ser emprestado para o Marcílio Dias, time de Itajaí, cidade que fica a 100 km de Florianópolis. A personalidade forte e o espírito de liderança são características desse senhor que, hoje, precisa associá-las a habilidade e disposição física para administrar os problemas sociais da comunidade que lidera.

Escolinha de futebol é fantasma

          O Morro do Mocotó tem esse nome devido aos marinheiros que desembarcavam na ilha e subiam o morro para comer mocotó. É considerado um dos lugares mais perigosos de Florianópolis. As operações policiais no lugar são uma constante. O tráfico de drogas acontece à luz do dia. As centenas de vielas desordenadas se transformam em rotas de fugas.   A falta de postos da Polícia Militar é um sinal de que o território é livre para o comércio de entorpecentes. A quase inexistência de saneamento básico revela o descaso do poder público. Anda-se por todo o morro e não se enxerga um mísero espaço destinado ao lazer.

         É aqui, longe de torcedores e de repórteres, que Eli Lopes trava suas batalhas diárias. Fazer um gol, agora, é conseguir benefícios para o Mocotó. “Nós precisamos de uma área de lazer, nós não temos onde botar nossos filhos. Muitas crianças caíram nessa vida – drogas - porque não tinham o que fazer. À noite os moradores ficam reclamando porque a meninada fica jogando bola na rua, mas não tem outro lugar”, alerta. Para o Conselho Comunitário a prioridade número um é a construção de um campo de futebol para as crianças e adolescentes praticarem o esporte e, com um pouco de sorte e talento, tornarem-se profissionais. “Seria uma forma de um guri desses crescer na vida e, alem disso, ajudar a família”, justificou um pai.

          No Morro do Mocotó encontramos a escolinha de futebol do Caramuru. Procurei saber onde fica a sede, onde treina. A escolinha conta com 130 pequenos atletas; com um detalhe: não treina. É isso mesmo, apesar de contar com seis uniformes, carteirinha e participações em torneios, o Caramuru não tem um campo para treinar. Eli Lopes comanda a escolinha e organiza competições para meninos e meninas, todos da comunidade. “A escolinha é só no papel” lamenta o ex-atleta. Enquanto o poder público não age, quem gosta de jogar bola tenta achar uma solução: descem do morro e transformam um gramado, às margens do asfalto, em campo de futebol.  O lugar não é lá essas coisas, tem uma acentuada inclinação que dificulta o toque de bola,

mas todo final de semana transforma-se no Maracanã dos Romários do Caramuru. Sem falar nos riscos de acidentes, uma vez que a bola está sempre procurando o asfalto, que mais parece a pista de atletismo do campinho, tamanha é a proximidade.

          Procuramos a Secretaria da Habitação para saber qual o projeto que a prefeitura tem para o lugar, uma vez que bastaria planar o campo e colocar o alambrado. O engenheiro da habitação, Américo Pescador, informou que não existe projeto para resolver a questão do campo. Segundo ele, o que existe é a construção da cancha de bocha e de uma quadra de areia no alto do morro (foto à direita). De fato, a cancha e a quadra estão sendo construídas, mas não chega nem perto de solucionar o problema. Primeiro porque a bocha não tem praticantes no morro, é um esporte trazido pelos imigrantes italianos e que não conseguiu, ainda, se tornar popular. Não é, nem de longe, um entretenimento para as crianças do Mocotó. Segundo porque a quadra de areia que está sendo feita é pequena e servirá apenas para os adultos. “Só dá pra jogar quatro contra quatro, e os adultos não vão deixar as crianças brincar”, antecipa-se Eli.

Mente desocupada é oficina do capeta

As lideranças locais - e quando falo em liderança me refiro a quem manda no morro - se comprometeram a colocar o alambrado no campo. Basta a prefeitura liberar o local. Para não deixar dúvidas: conversei com traficantes que comandam o comércio de drogas no morro e eles disseram que, se a prefeitura não quer ajudar a comunidade, eles ajudam. Eles constroem o alambrado, desde que o poder público não mande derrubar. A atitude dos mandatários do morro se baseia na política da boa vizinhança. Tratam bem a comunidade e, em troca, esperam que ela retribua com lealdade. O quadro não é diferente dos apresentados em outras cidades onde o Poder Público tem se mostrado inoperante. “Sim, até o pessoal que tá nessa vida – tráfico – pode ajudar. A gente não pode criticar ninguém, alem do mais, os caras são todos gente boa. Não incomodam não”, explica um morador local.

 Engana-se quem pensa que no morro impera o terror. De acordo com o pastor da Igreja Assembléia de Deus, que disse não ter autorização para falar em nome da instituição, o morro é muito sossegado. “Os cultos se realizam na mais perfeita ordem. Ninguém vem aqui perturbar, não. Nós somos respeitados”, diz. Daniel de Assis Lacerda (foto), 41 anos, pedreiro, separado, nasceu e se criou no Mocotó e diz com orgulho: “Aqui não tem roubo”. Por sua vez o motoboy André César, 34 anos, é de São Paulo e mora há 11 anos no Morro. Não se faz de rogado antes de falar sobre a comunidade onde reside: “eu saio pra trabalhar e deixo a porta aberta. Pode ir na minha casa que ela vai estar toda aberta. Eu não preciso fechar”.

          Narbal Almeida, 79 anos, é aposentado do Banco do Brasil. Nasceu em Campos Novos e veio para Florianópolis aos oito anos. Quando criança costumava visitar, com o pai, uma família que morava no morro. “Eu não sei se uma área de lazer evita que alguém possa entrar nas drogas. Acho que o sujeito que quer usar, usa, independente de ter ou não um local para lazer. Penso que pode, inclusive, se tornar mais um lugar para ser explorado pelos traficantes. Não que eu seja contra, mas tenho dúvidas quanto aos resultados”, contrapõe-se. José da Silva, 50 anos, é pintor e discorda: “se manter a crianças sempre ocupadas, não vão ter tempo de tá aprendendo coisa ruim. Mente desocupada é oficina do capeta”, adverte. Joelma Demétrio, 37 anos, que não é a vocalista da Banda Calypso, diz que o morro é malvisto porque a imprensa só mostra o lado pobre, o ladrão, o que mata. “Não mostra o lado família. A prefeitura precisa ter uma política de desenvolvimento para o local. O morro é visto com racismo, pré-conceito. Eles precisam de espaço para lazer”, sentencia a maquiadora. Kleber Teixeira, 25 anos, estudante de educação física, mora na região da Beira-Mar e diz que a prefeitura não está preocupada com o Mocotó porque os moradores são pobres. “Aqui foram construídas duas academias para os aposentados na Beira-Mar. Por que a prefeitura se nega a fazer um campinho para o pessoal do Morro. Os aposentados daqui podem pagar academia. Mais importante era fazer a área de lazer do Mocotó” idigna-se.

Criança sem lazer, futuro previsível

          Enquanto a solução não vem, os moradores do Morro do Mocotó continuam subindo e descendo as escadarias em direção ao campinho improvisado. Américo Vargas é assessor da Fundação Municipal de Esportes e informou que a área pleiteada é propriedade da União, portanto, a Prefeitura não pode fazer nada. Segundo Vargas, é preciso um projeto da Câmara Municipal solicitando que a União doe o terreno à Prefeitura. Por outro lado, ninguém retira as traves colocadas pelos moradores. O Conselho Comunitário corre atrás dos políticos pedindo empenho na construção do alambrado, sem saber direito a quem recorrer. Mas o veterano campeão catarinense pelo Avaí, em 1976, está sentido as pernas cansadas. A esperança por dias melhores vai sendo derrotada pelo descaso das autoridades. “Eu vejo o futuro dessa criançada de uma maneira muito difícil. Tenho 60 anos, tenho netos. Outro dia falei pra minha mulher: ainda bem que a gente não vai tá aqui pra ver”.