Ele não estava bêbado. Trupicava, sim, mas daí para a embriaguês faltava uns trinta e três quilômetros. Os olhos abarrotados de remela comprovavam que a noite tinha sido menor que o futebol jogado pelo Avaí – pelo Grêmio, pelo Atlético Mineiro, pelo time de Mano Menezes. Não me pergunte como, mas o cara tinha as costas abraçadas por uma mochila duas vezes maior do que a arcada dentária de Ronaldinho Gaúcho. A sonolência, os resquícios de álcool e a pesada carga, como se não bastasse, tinham uma jaqueta como aliada. Pezinho para frente, pezinho para trás, o moço tentava fechar o zíper da malvada. O casaco insistia em se manter aberto. O vento frio que soprava do mar não aliviava e o jeito era proteger o peitoral. Na tentativa cega de lograr êxito, Cinfrônio – chamemos assim o desafortunado – nem dava bolas para os passantes que lançavam-lhe impropérios. “Sai daí, ô cachaceiro”, gritou um cidadão de ar superior, como se nunca tivesse tomado um porre. Eu, protegido pelo capacete, bradei baixinho: “deixa o cara, fariseu. Ele só difere de você na dosagem”. Ainda bem que o conforto da Mercedes (dele) bloqueou meus sinais sonoros.
Cinfrônio, nisso eu concordo com os fiscais da vida alheia, escolhera um péssimo local para fechar a maldita jaqueta. O cruzamento de duas avenidas próximas à Beira Mar Norte é um carma para os moradores de Floripa – principalmente quando os semáforos estão quebrados, que era o caso. Nem um pouco preocupado com a crise financeira que ameaça jogar o mundo num inferno, o mendigo, com aquela determinação que só um ébrio tem, ignorava as buzinadas e palavrões. Um motorista mais exaltado fez a denúncia: “seu filho da ͖@#$&, vai perturbar noutro lugar”. Fiquei, então, sabendo sobre a mãe do homem, embora tenha achado que a acusação fosse infundada. E me questionei: “ora, quem é o verdadeiro incomodador, o da birita ou quem deixou o sinal de trânsito estragado em plena hora do rush?”. Dois olhos amigos não desgrudavam de Cinfrônio.
Semelhante a um pajem, o alvinegro cachorro se postava como uma espécie de anjo da guarda do dono. Quando, enfim, Cinfrônio alcançou a calçada, foi agraciado com uma lambida de parabéns. E o trânsito continuou uma porcaria. Acho que até piorou. O vestígio de humanidade se fora junto com Cinfrônio e seu cão. Restou motor, buzinas e caras amarradas. Ou isso é o ser humano?
Amigo; Sua crônica de hoje me reportou ao livro do escritor portugues José Jorge Letria "Coração Sem Abrigo". Recomendo.
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