Traí e matei meu amigo. É uma
confissão forte, mas é preciso que seja feita. Confessando, alivio o peso da
culpa que faz este nordestino ficar mais por baixo do que torcedor do Avaí. Trair
quem se gosta, em si já é um assassinato; tirar a vida, no entanto, é o último
estágio que leva um filho de Adão a ser semelhante ao protozoário. Domingo, sete
da manhã. Cai uma garoa no Três Platôs. Dois homens chegam em frente à porteira
e chamam: “Julliard?”. Desço até lá e abro o cadeado que impede o acesso deles
ao sítio. Munidos de cordas, vêm buscar Pirata, Gerineldo e Mel. Os três estão
pesados demais e tornaram-se inadequados para o solo cheio de altos e baixos da
propriedade. Estranhando a presença, os animais ficam a distância. Olham desconfiados.
Pirata está com três anos. Comprei-o quando tinha seis meses. Era osso e couro.
Ah, e dois projetos de chifres. Semimorto, de vida só possuía os carrapatos que
cobriam-lhe como se fosse uma manta. Uma olhada mais examinadora revelava por
completo o estado do boizinho – bernes refestelavam-se em sua carne. Dias foram
preciso para que ele permitisse minha aproximação. Já desverminado, livre dos
carrapatos e dos esfomeados bernes, aos poucos viu em mim um amigo. Dei-lhe
casa confortável, comida de primeira e a companhia de outros bovinos – entre eles
a Mel e o Gerineldo.
Sempre que eu chegava ao
sítio, ele me saudava com um berro; independente da hora. Não satisfeito, saía
em desabalada carreira na minha direção. Nunca, nunca teve um ato de
agressividade para comigo. O que ele não imaginava – e nem eu premeditara, juro
– é que ao ficar bonito e grande seria incompatível com o lar onde morava. E nos
doze graus da manhã acinzentada de domingo chamei-o pela última vez: “Pirata, ô
Pirata, vem cá, vem”. E ele veio. “Se o meu dono me chamou é porque não corro
perigo”, tenho certeza que imaginou. Como um político que recebe votos de
cidadãos e depois os esfaqueia em troca de punhados de dinheiro sujos, passei a
corda nas guampas de Pirata. Mel e Gerineldo tiveram o mesmo tratamento. Eles insistiram
em ficar. Era como se estivessem dizendo: “nosso lar é aqui, não queremos ir
embora, muito menos com estes homens que não são íntimos nossos”. Fechei-me dentro
de mim e fechei a porteira para nunca mais vê-los.
E quando eles sumiram na
curva da estrada senti como se estivesse perdendo partes de mim. Mel, bonita e
de boa linhagem, será usada como reprodutora, imaginei. Gerineldo, touro, na
certa terá vida longa. Pirata, entretanto, por ser boi será abatido, concluí. E
chorei por dentro, talvez com vergonha de me derramar em lágrimas por causa de
uns quadrúpedes. Mas eu sabia que eles eram mais do que animais. Pirata era um
amigo. Conversava comigo. Quem o conheceu sabe que não minto. Hoje, porém, tive
a notícia: “matei o Pirata”, disse o comerciante que o comprou no domingo
chuvoso. Foi como um tiro à queima-roupa. E senti a dor de ter traído e matado
um amigo. Sinto-me igual ao administrador público que não investe em saúde e deixa que os seus eleitores morram à míngua em corredores imundos de hospitais desaparelhados. Assim como o prefeito, o governador e o presidente matam o munícipe, matei Pirata.
Que triste!Deprimi!
ResponderExcluirFiquei MUUUUITO TRISTE. Acredite!
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