- Ô, irmão, cuida
com essa moto, hem. Vai devagar.
Esse cuidado com um desconhecido me deixou pensativo. Porque
foi sincero. E a sinceridade, meu chapa, é uma roupa discreta. Não é carregada
de purpurina, como o é a da sua irmã gêmea - a falsidade. Só quem convive, ou
conviveu, com as duas é capaz de diferenciá-las. Ronaldo tinha uma espécie de
limo no pescoço. A barba e o bigode ralos não viam uma gilete há pelo menos uma
semana. O jeans e a camiseta, numa olhada rápida, pareciam acompanhá-lo nas
últimas 72 horas. Só mesmo a chuva para fazer com que eu me aproximasse de um
morador de rua como ele.
A chuvinha fina, daquela feita para molhar bobo, empurrou-me
junto com a moto para o primeiro abrigo que vi. Foi quando ele me cumprimentou.
Bem articulado, lamentou a chegada das imprevistas águas e o incômodo que
causara a nós dois. Com o preconceito que é passado de geração a geração,
pensei: “lá vem ele me pedir dinheiro”. Estávamos próximos a uma casa de massas
– que eu não direi o nome porque não sou pago para isso – e vi que de lá saía
um colega do Ronaldo. As características não deixavam espaço para dúvida, era
morador de rua também. Com um sorriso
furado, inteiramente alheio a crise econômica da Europa, trazia uma caixa cheia
de fatias de pizza. Estendendo o braço direito na direção do sem-casa, ofereceu
numa mistura de idiomas:
- Pega aqui, brother.
- Valeu, irmão – e Ronaldo pegou dois pedaços.
- Pega mais, brother – insistiu – porque tô indo embora.
Ronaldo devorou os dois que
tinha nas mãos fervilhantes de bactérias e atacou outros três. O da pizza
esticou a caixa na minha direção.
- Vai um pedaço, brother?”.
- Não, não, obrigado
Mais uma amostra de dentes
e despediu-se. A chuva acompanhada de cinzas do vulcão chileno continuava e
Ronaldo contou um pouco acerca da vida na rua. Da vinda do Mato Grosso para
Floripa, da mãe.
- Ela trabalha no
tribunal, irmão; ganha bem. Mas é materialista.
Monossilábico, eu
levantava a bola para ele cortar.
- Eu não acredito em Jesus
– afirmou. Pensou um pouco, coisa de 3 segundos e corrigiu:
- Até acredito; mas se ele
vai voltar, por que não voltou ainda? A coisa tá feia, irmão. Ele tá esperando
o que?
Após uns dez minutos a
chuva ameniza. Quando acelero a moto ele faz uma cara de quem está sinceramente
preocupado com minha vida e alerta:
- Ô, irmão, cuida com essa moto, hem. Vai devagar.
É, bendita chuva.
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