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quarta-feira, 30 de março de 2011

Dói

Dói.
Dói ver os processos espúrios usados na elaboração das legislações. Independente de quais leis estejamos falando, há sempre uma mão maior fazendo os dados indicarem os números desejados.

Dói.

Dói ver o modo manipulador como a democracia é legitimada. O que é uma eleição, senão uma licitação com vencedor previamente arranjado? E sempre haverá um coitado fazendo oposição, como se os votantes acreditassem que ele tem alguma chance – e a velha luta de Davi contra Golias é sacanamente lembrada. Pobre bíblia.

Dói.
Dói perceber que a sociedade corrompida, corrupta e corruptora, ainda se acha digna de cobrar honestidade. Mão na consciência, meu caro, morreu com os homens da caverna. Com a ideia fixa de que no caso de “farinha pouca, meu pirão primeiro”, enveredamos pela senda da maldade, da ilicitude e da imoralidade. E esse atalho, paisano, foi legalizado por nossas mentes calcinadas, doentes e dementes.

Dói.
Dói olhar de lado e ver a mentira com a sua chaga purulenta, fétida e repulsiva, travestida sob um resplandecente manto de limpeza, pureza e lisura. E nós, com nossas narinas insensíveis, adentramos a tenda da maligna com o peito esfuziante, e nos colocamos sob sua temerária proteção. Compramos um bilhete para o céu e embarcamos em um vagão rumo ao inferno.

Dói.
Dói o bombardeio de retórica que mina o quintal de nossas almas. Um dia nosso espírito teve jardins floridos como os suspensos da Babilônia. Ah, isso foi no tempo em que Bumba meu boi era bezerro, simpatia. Nossa não-matéria degringolou. Por dar ouvidos a ensinamentos frutos de mentes obscuras, caímos todos na vala comum. A vala da cegueira, da idiotice e da insensatez. Ah, “alma minha gentil que te partiste”.

Dói.
Dói olhar grandes olhos incapazes de discernir a mão direita da esquerda. Pés que correm à sepultura como se estivessem subindo a um palco. Braços que não abraçam no caminho escuro, esmurram. Bocas que não beijam, somente escarram. Palavras que não saram, matam.

Dói.
Dói, e de tanto doer, acho que nem sinto. De tanto gritar, acho que nem emito som. De tanto chorar, acho que lágrimas não rolam mais. Só resta a dor. E dói.


terça-feira, 29 de março de 2011

Figueirense conta com Jesus Cristo

     Jesus Cristo é do Figueirense. E joga no time de Florianópolis. E é o camisa 10 da equipe. No Estreito, bairro onde se localiza o estádio da agremiação, ele é conhecido como Fernandes. Juro que eu não sabia disso; caso soubesse, já teria avisado aos fieis. Imagine só a romaria na direção da capital catarinense, meu amigo. E uma multidão de devotos, você sabe mais do que eu, costuma deixar quantias vultosas de dinheiro nos centros de peregrinação. Nesse caso, fosse eu o revelador da presença do Nazareno em um campo de futebol, meu bolso ficaria abarrotado só da comissão que o prefeito me daria. Óbvio.

     Imagine, paisano: a arena estaria sempre lotada. Uns gritariam: “Chuta essa bola para o gol, Fernandes”; outros, menos futebolísticos e mais espiritualizados, salmodiariam: “Fernandes, cadê você, eu vim aqui só pra te ver”. E a renda, hem! Do lado de fora os camelôs estariam se refestelando: “Olha a camisa do Fernandes, abençoada com o suor do craque, é só dez real”. O Rio de Janeiro e seu Cristo Redentor seria uma piada, Fátima e Lurdes sumiriam do mapa, a febre religiosa seria o Orlando Scarpelli com Fernandes desfilando de chuteiras no gramado e sendo incensado por entusiasmados torcedores. E se a diretoria soubesse tirar proveito da situação em benefício do clube, dentro de um ano teríamos, sem nenhuma dúvida, os galácticos do Figueirense vencendo o Campeonato Brasileiro a Libertadores e o Mundial de Clubes da FIFA. Mas essa coisa de diretoria... Acho melhor nem pensar no que eles fariam com tanta grana.

     Isso, meu caro, se fosse eu quem tivesse descoberto a identidade secreta do meio campista do Figueirense. Mas não fui eu. Quem o fez foi um comentarista da rádio CBN. Estava eu vindo do norte da ilha para o Centro, quando resolvi ligar o rádio. O Figueirense estava jogando com a Chapecoense, a partida começara às 18h30 e terminara há poucos minutos. Foi aí que o profissional da bola se superou: “Ele sabe onde está, ele sabe o que fazer, ele é o máximo, só ele para fazer esse gol, ele é isso, ele é aquilo, ele pode, ele não pode, ele manda prender, ele manda soltar, ele faz e acontece, ele fez o gol da vitória do Figueirense”. Devo esclarecer que as palavras ditas não foram bem essas, acho que foram mais fortes. O fato é que, ouvindo-as, não hesitei: “Foi Jesus Cristo quem fez o gol”.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Polícia Rodoviária Federal, que mal exemplo

     Depois de um dia de lazer em um parque aquático no Litoral Norte de Natal, pegamos a BR-101 de volta. Estávamos retornando de um passeio em família. De repente, um bloqueio policial. Vou te contar: que coisinha mais mal sinalizada. Um servidor público da Polícia Rodoviária Federal estava no meio da rodovia. De costas para nós, o imaturo. Apesar da idade, não tinha menos de 50 anos, o homem não aprendeu que não se deve postar-se no meio de uma pista de rolamento; principalmente de costas. A posição dos cones era confusa. O motorista, Bruno, diminuiu a velocidade do veículo e esperou que o guarda se manifestasse. E não é que o danado se manifestou, mesmo. O fardado, que se fosse guri eu diria que era parecido com Robinho do Milan, ficou possesso. Brabo feito um siri dentro de uma lata, vomitou prepotência. Daquelas típicas de quem não sabe a diferença entre autoridade e esquizofrenia. Pensei, juro por deus, que o louco iria sair algemando todo mundo. Preparei-me para intervir e, com a filmadora em punho, registrar como era ridícula a sinalização que o inapto policial colocara na via.

     Nosso motorista foi paciente e disse ter ficado embaraçado com os cones. Para minha surpresa, o federal amainou e pediu que seguíssemos. Ouvi uma policial rosnando alto: “multa, multa”. Eu disse “rosnando” referindo-me ao leão, não ao cachorro. Percebi na voz da mulher uma raiva enrustida. A dupla não lembrava, nem de longe, dois “homens da lei” a serviço do povo. Como eu queria que eles tivessem parado o carro para aplicar uma multa. Deixamos os ensandecidos para trás e continuamos a 20km/h pelo trânsito lento do fim de domingo.

     Dois meses depois, recebo um email do nosso motorista em Natal, o Bruno. Indignado, o chefe de enfermagem conta-me que recebeu uma multa referente a uma suposta infração cometida na BR-101, Km 66 UF RN, às 16h50. O crime? Artigo 209 do CTB: “Transpor, sem autorização, bloqueio viário com ou sem sinalização ou dispositivos auxiliares, deixar de adentrar às áreas destinadas à pesagem de veículos ou evadir-se para não efetuar o pagamento do pedágio”. “Robinho, desgraçado”, indignei-me, “você tinha que ser preso, mal-intencionado”.

     Aonde já se viu, senhoras e senhores, um camarada que é pago para proteger o cidadão, que deveria estar ali para orientar os motoristas, esperou o brasileiro dar as costas e atirou. Sim, paisano, o que ele fez foi muito mais que dar um tiro; foi esfaquear pelas costas e depois escalpelar. Além do mais, caluniou. Sim, ele acusou o motorista de um crime que o rapaz não cometeu. Ora, ora, Bruno passou porque o carcará sanguinolento autorizou que ele assim procedesse. Claro que a vítima vai se defender, afinal, se a vítima não tiver vez nenhuma contra o carrasco, não há justiça.

     Eh, Polícia Rodoviária Federal, que situação, hem. Ontem, a Rede Globo exibiu uma reportagem mostrando as mazelas que envolvem nossa querida Força. Sei que a maioria dos que ali estão são pessoas de boa índole, gente honesta e respeitada. Cruzo esse Brasil de ponta a ponta e raramente encontro policiais rodoviários federais despreparados. Um ou outro são as nódoas que insistem em manchar o orgulho de nossas estradas. Policiais como o “Robinho”, que aviltou Bruno, é minoria, graças a Deus. Vou ficar aqui esperando o resultado do processo de defesa. Até lá, quem sabe, “Robinho” terá ido para o banco de reservas e deixará de pedalar com a bicicleta alheia.

domingo, 27 de março de 2011

Entre o Padre Perereca e Mano Menezes, Neimar fez a festa

     Antes de qualquer coisa, não deixei de ir à praia por causa do jogo da Seleção Brasileira. Apesar do raríssimo sol da ilha de Santa Catarina em dias de domingo, fiquei dentro de casa. Acordei tarde, foi isso. Quando dei por mim, estava sentado no sofá com um livro na mão e ouvindo a voz horrorosa de um guri da Rede Globo anunciando o jogo de futebol. Fiquei entre o Padre Perereca e Mano Menezes. O referido padre é personagem do livro 1808; Mano, você deve saber, é o funcionário de Ricardo Teixeira responsável por convocar e escalar atletas que vestem a camisa do time da CBF.
     Vamos à partida. Sensacional. É bem verdade que o gramado muito plano e sem buracos atrapalhou o espetáculo. Campo irregular, todo boleiro sabe disso, dá uma sensação de perigo constante aos goleiros. Diverte a torcida quando os pernas de pau atrapalham-se com a bola. Se eu fosse presidente da FIFA, ordenaria que fossem feitos 75 buracos em cada campo de futebol. Aí, sim, teríamos certeza de partidas emocionantes. Os escoceses, adversários, demonstravam clara falta de intimidade com a gordinha. Tivessem eles um Gilead no meio de campo, o jogo seria outro. Óbvio, meu chapa. Minha sogra, que entende tudo de futebol e deveria fazer parte da comissão técnica Canarinho, indicou o caminho das pedras: “Tem que chutar pro gol”. E a torcida, hem?, que festa. Lá para tantas, tirei os olhos do livro de vi na tela uma cena, no mínimo, bizarra. Um camarada com a camisa levantada, sem sutiã e com o peito cabeludo, homenageava um brasileiro: Galvão. Fim do primeiro tempo: Neimar, um, falta de habilidade, zero.

     Ah, vi os pedaços de jogo pelo Sportv. No intervalo, zapeei entre canais e notei Galvão Bueno entrevistando um torcedor escocês. O narrador fez uma pergunta idiota em inglês e comentou, jocosamente, o uso da tradicional saia que o camarada estava vestindo. Em determinado momento, um nobre europeu jogou uma banana no campo. O racismo e o preconceito dos brancos do velho continente não foram totalmente superados. Pior para a Escócia. Neimar dois a zero. Mano fez algumas substituições e tirou, entre eles, Leandro Damião. Esse cara, pode anotar, paisano, será o nove da CBF por, pelo menos, uma década. No lugar dele, entrou Jonas, que recebeu uma bola com açúcar de Lucas. Isolou. Meu sogro foi enfático: “Esse, até eu faria.” Louve-se, ressalto, o entusiasmo de Luiz Carlos, narrador do 502. O cidadão fez de tudo para me convencer que a Escócia é um time de futebol. Continua achando que tudo não passou de uma farsa.

sábado, 26 de março de 2011

O mundialito é mesmo da Fuzarca

"Vamos todos cantar de coração
a Cruz de Malta é o meu pendão".

     Depois de 10 longos anos, o hino do Clube de Regatas Vasco da Gama voltou a tocar em rede nacional. O trem-bala da Colina, como o time vem sendo chamado, acabou de vencer o poderosíssimo Sporting de Portugal e sagrou-se campeão do Primeiro Mundialito de Futebol de Areia de Clubes. Não querendo cair na vala comum: eu já sabia. Argumento: ontem, na semi-final, o Vascão depenou o Urubú da Gávea. Ora bolas, alí foi a final. Após ganhar do time de Zico e da Rede Globo, lógico que seria campeão. O Sporting, meus caros, parece que passou a noite na farra. Já entrou em campo cansado. Os comandados de Roberto Dinamite - que estava lá - não foram ameaçados. Nem mesmo quando levaram o primeiro gol do jogo e tiveram que virar. Aos atletas, bastou lembrar que "o Vasco é o time da virada". Foi só correr para o abraço. Algum analfeto em futebol dirá: "4X2 não é um placar tão arrasador". Nesse caso, serei obrigado a informar que os gols dos portugueses foram doados - isso mesmo, doados - pelos vascaínos. Aquela questão histórica, sabe? O Vasco é um time fundado pela colônia portuguesa, tem um laço ultramarino com nossos colonizadores e deu uma mãozinha.

     Vasco campeão. Ficaram pelo caminho, Milan, Barcelona e Santos, só para citar algumas das esquadras que participaram do certame. Vou te confessar: só em não ser o Flamengo o campeão, já é uma grande festa para mim. Caso contrário, eu teria que suportar o Rivelino, um colega meu de pelada, enchendo o saco de tudo e de todos. E a turma da Globo? Ô cambada de chatos. Torcem descaradamente pelo Flamengo. Passariam o resto do fim de semana alardeando "Flamengo campeão do Mundialito de clubes". Ainda bem, Vasco, que você ganhou. E teve eleito o melhor jogador da competição, o uruguaio Pampero. No fim os jogadores vascaínos comemoraram: "Casaca, Casaca, Casaca, saca, saca, a turma é boa, é mesmo da Fuzarca". E o hino do Vasco voltou a ser tocado na televisão. E olhem bem, acho que esse hino pode ser tocado outras vezes, hem. O Vasco está se organizando e montando uma forte equipe no futebol de campo. Pode surpreender muita gente.

Parabéns, Vasco.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Hoje tem futebol? Tem sim, senhor

     Vamos poupar o tempo de quem não gosta de futebol. Sim, porque esta crônica será sobre o esporte que tem o Ganso como nome supremo. E se você acha que Ganso é coisa de jogo do bicho, tchau, nos encontraremos amanhã. Se você pensa que entende de bola, e não concorda que o camisa 10 do Santos é o melhor do mundo, lamento, és um sem visão. O paraense é, pelo menos, 14 vezes superior ao Messi. Espera, as próximas três copas tratarão de provar minha sapiência futebolística. Sem bolodórios, vamos ao que interessa. Quarta-feira é dia de bola na rede. Tudo bem que as principais partidas começam quase a meia-noite, mas fazer o quê, são coisas da televisão.

 
     O Fluminense precisava vencer o América do México para continuar vivo na Libertadores. O Paulista era a pedra no meio do caminho de Rogério Ceni. E o Concórdia, hem, desesperado para não ser rebaixado, estava sedento de vitória. Mas o Figueirense fez logo um a zero com um golaço de Reinaldo, aquele mesmo que jogou no Botafogo. E o Fluzão, meu deus do céu, que papelão. “Ora, ora, Digão, que bobeira né?” O goleiro são-paulino deu rebote e teve que buscar a bola no fundo da rede. O Concórdia tratou de virar o jogo ainda no primeiro tempo. A torcida do oeste foi ao delírio com o segundo gol do time. By, by, Figueira, deu pra ti.

 
     O Fluminense contou com a ajuda dos Bandeiras para não ser humilhado. Contou também com o talento de Deco. O São Paulo buscava o empate, o América se defendia e o Figueirense estrebuchava. Rogério Ceni não estava nas melhores noites e o Figueirense foi derrotado. Mesmo com a fraca atuação de Conca, o Paulista ganhou. 502, 510 e 512. Os canais se alternavam e os placares borbulhavam. Já era quase quinta-feira, quando a rodada teve fim. O Fluminense provou que mesmo com Digão na zaga, pode vencer. E cá pra nós, o pé frio era mesmo o Murici. Já o Figueira de Jorginho, que fiasco. Futebol na televisão é isso.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Parabéns, Floripa

Hoje é aniversário de Florianópolis.

Algumas fotos da avenida mais charmosa da cidade:

segunda-feira, 21 de março de 2011

Adeus, Obama

     É incrível como tem gente incompreensível. Agenor, chamemos assim o meu amigo. Sócrates, não aquele desajeitado bom de bola que jogou no time brasileiro perdedor da copa de 1982, é meu outro camarada que vou futricar nessa crônica. Agenor e Sócrates, dois compadres com a amizade arranhada pela intolerância desse último. Os nomes são fictícios, amizade. Os fatos, não; são reais. Pois bem, Sócrates mora em uma cidade do interior e Agenor vive nababescamente na Capital. Sócrates vem melhorando muito sua situação econômica. Há alguns anos, vivia de cultivar a terra. Hoje, tem uma fabriqueta, distribui alimento para o comércio do município em que mora e tem até segurança particular. Nada disso, entretanto, se compara a opulência de Agenor. Formado na melhor faculdade da região, herdeiro de uma fortuna e proprietário de empresas de segurança, é um lorde.

     De vez em quando, os parentes de Sócrates vêm à capital e hospedam-se na casa de Agenor. Outro dia, Agenor recebeu funcionários do colega interiorano em seu amplo escritório na orla marítima. Na semana passada Agenor precisou visitar Sócrates. Era uma visita interesseira, daquelas que o candidato a prefeito faz ao eleitor. Agenor queria ampliar seus tentáculos pelo interior. E Sócrates preparou-se todo para recebê-lo. Chamou seus melhores homens e encarregou-lhes de proteger o distinto visitante. Preparou-lhes os melhores aposentos e contratou os melhores palhaços para diverti-lo. Agenor chegou em avião particular. Trazia a mulher, duas filhas e a sogra, além de alguns amigos. Ah, vinha com veículo próprio, bem mais seguro e confortável do que o de Sócrates.

     Sócrates, sujeito simples, ficou triste com o descaso de Agenor. “Ora, onde já se viu, trazer seguranças particulares. Como se os meus fossem incapazes de protegê-lo”, lamentou. A família de Sócrates, coitada, interiorana e achando que tudo proveniente da capital é para lá de bom, embasbacava-se ouvindo Agenor falar. Podia ser uma idiotice, batiam palmas. Sócrates viu seus seguranças serem desprezados, seu veículo ser preterido e suas acomodações minimizadas. Dois dias depois, na hora de Agenor ir embora, o lugarejo ficou triste. Agenor deixaria saudade. “Ele sorriu para mim”, disse um menino de dentes estragados. “Ele apertou minha mão”, entusiasmou-se um homem que deve R$ 25.000,00 ao banco. Sócrates, sentindo-se humilhado com a prepotência dissimulada do amigo, despediu-se com um frio aperto de mão. Foi para casa, tomou um banho e ligou a televisão. Era hora de acompanhar a visita de Obama ao Brasil.

sábado, 19 de março de 2011

Uma mente movida a rádio de pilhas

     Quero, antes de qualquer coisa, dizer que não gosto de dividir uma crônica ao meio. Acho que crônica tem que “chegar chegando”. Detesto, eu disse detesto, esperar o dia seguinte para ler o desfecho de uma crônica. Outro dia, eu li uma num jornal e o cronista finalizou dizendo que continuaria no dia seguinte. Fiquei in-ju-ri-a-do. Prometi para mim mesmo que não leria, que era um abuso. Curioso, no outro dia já acordei pensando no que o “safado” do cronista diria. Óbvio, li. Ontem, porém, caí na vala comum. Comecei a crônica com a frase “Ontem à noite, eu estava na década de 1970”. Discorri sobre a correria do dia-a-dia e deixei a década de 1970 para hoje. Pois bem.

     Eu estava assistindo o jogo entre Atlético goianiense e Curitiba. De repente, um cochilo. De olhos fechados, escutava a voz do narrador ao longe. Atlético goianiense. Desperto, mantive as pálpebras cerradas. Viajei numa velocidade espantosa no tempo. Vi-me no Rio Grande do Norte da década de 1970. Uma luz tremeluzente iluminava o barracão que servia de alojamento para os homens da família. Entre esses homens, me incluo, embora, à época, não passasse de um fedelho. Um rádio de pilhas, preso na cama de cima de um dos três beliches, contava a saga do América de Natal em busca de uma vitória contra o time goiano. O jogo era em Goiás. A tarefa, lembro como se fosse hoje, era quase impossível. O Atlético era um demônio ferocíssimo, em minha cabeça imaginosa. O time potiguar, no meu imaginário movido a rádio de pilhas, era formado por seres iluminados, bondosos demais para matar o peçonhento Atlético.

     Era uma questão de tempo para o locutor, torcedor ferrenho do time de Natal, lamentar o gol atleticano. Eu, à época, também torcedor do “Mecão”, dormiria triste. Quero esclarecer que ainda torço pelo América, mas agora o ABC também divide meu coração futebolístico. Torço mesmo, quero deixar bem nítido, é pelo Alecrim Futebol Clube. A bem da verdade, não sou o tipo de torcedor que um time precisa. Gosto de ver é gol, não importa muito quem o faça. Naquele tempo de luz a querosene, sem a mágica da televisão e sem o conhecimento que me tornaria um descrente na lisura do esporte bretão, importava muito para mim quem fazia o gol. Se era dos endiabrados atleticanos, o sono era doído.

     Abri os olhos e o placar indicava: Atlético 1 X 2 Curitiba. A transmissão em HD trazia o campo de jogo para dentro do quarto. Que coisa sem graça. Não era, nem de longe, o Atlético que eu conheci nos tempos de menino sambudo. Seus jogadores não carregavam tridentes pontiagudos. Estavam humilhados por adversários vindos do distante Paraná. Que também não eram lá essas coisas. Meu Mecão venceria esses molengas facilmente, pensei. Desliguei a TV e voltei à noite de 1970. O sono não seria doído; o coração, no entanto...

sexta-feira, 18 de março de 2011

Entre um despertador, uma buzina e um respirar

     Ontem à noite, eu estava na década de 1970. Calma, calma, a frase tem nexo, sim. Sem querer pedir demais: leia-a de novo, por favor. Please, please. Leia, mais uma vez, a frase inicial e feche os olhos. Não, não é nenhuma magia. Ou... que seja. Não sou, juro por tudo que tens de importante, mágico. Ô, simpatia, você não deveria estar de olhos fechados neste momento? Sei, sei, a pressa te fez pular o “feche os olhos”. Tudo bem, a graaaaaaaaaaande maioria das pessoas vive em alta velocidade. O cara já acorda com o infernal barulho do despertador. Antes de alongar o corpo, como ensinam os gatos, os cachorros ou qualquer outro animal, o cidadão pula da cama e corre para o banheiro. Uma chuveirada de um minuto – para os mais asseados –, um chacoalhar de escova dentro da boca e uma visita ao vaso sanitário. Não necessariamente nessa ordem, diga-se de passagem. Hora de se vestir: “Oh, meu Deus, qual a blusa que devo usar para combinar com a saia”, apavora-se a rainha do lar. O celular grita outra vez; “Tô saindo de casa agora”, informa entre uma respirada e outra. Um cafezinho, um cafezinho. O camarada com maior tendência ao suicídio sai sem botar nada no estômago. Pam, pam, pam. “Tira essa tartaruga da frente, ô, barbeiro. Não vê que tô com pressa, idiota”. Pior para quem não tem carro e precisa se espremer entre desconhecidos do buzão. “Esse desgraçado desse motorista não percebeu que não cabe mais ninguém?”, resmunga.


     Agora, seja sincero, paisano, você acha que uma pessoa num ritmo desses é capaz de fechar os olhos diante de uma frase que leu no blog do Gile? É preciso, saliento, fechar os olhos para enxergar certas belezas. É preciso, reafirmo, com os olhos cerrados, respirar fundo. Só então, coisas como a frase “Ontem à noite, eu estava na década de 1970” vão fazer sentido. Amanhã, direi o que eu estava fazendo ontem à noite na década de 1970. Enquanto isso, respire, respire, respire. Agora respire fundo, o mais fundo que puder. Puxe o ar pelo nariz e solte-o pela boca. Feche os olhos. Se você fechou os olhos, pode ler o post de amanhã. Se não, volte à primeira linha desta crônica. E não seja mal-educado. Nada de xingamento. Ontem à noite, eu estava na década de 1970.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Os Estados Unidos, nação Cristã?

     Você já ouviu, certamente, alguém dizer que os Estados Unidos é uma nação cristã. O presidente americano, sempre que encerra um discurso, solta um “Deus abençoe a América”. Essa prática vem dos tempos imemoriais, permita-me o exagero. Outro dia, escutei um religioso estufar o peito e declarar que “o Brasil é o maior país católico do mundo”. Ok, ok. Congratulation, norte-americanos; parabéns, brasileiros. Estendamos, pois, as felicitações a todos os países do novo mundo. O que te pergunto, paisano, é se você sabe como os países das três Américas foram colonizados. Uma ideia vaga, todos nós temos, não é? Ou você não se lembra – já tenho que me esforçar para lembrar - daquela pergunta idiota que todo professor de história fazia?

- Quem descobriu a América?

- Cristovão Colombo.

     Aí, não se dando por satisfeito, selava nossa ignorância:

- Em que ano?

- 1492.

     Um aluno mais inteligente, e sempre tem um desses, vestia-se de autoridade no assunto, e esnobava diante dos abobados:

- A bordo de três caravelas: Santa Maria, Pinta e Nina.

     Pe-la-mor-de-Deus, Deus, Deus, Deus, Deus. Criava-se ali, naquela sala de aula ridícula, o mito do estadunidense superior. Era como se apenas os habitantes do país de Obama fossem americanos. O resto, ora, o resto incorporou um complexo de vira-latas – conforme Nelson Rodrigues - e aceitou ser chamado de latino. E o danado do professor nunca me disse que Colombo atracou foi nas Bahamas, não em New York. Ah, se eu te pego, miserendo.

     Recomendo-te, pois, como diria um meritíssimo, a ler o livro Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brow. São 380 páginas de aventura pelas terras indígenas que foram roubadas por um exército americano cruel e sanguinário, covarde e “protegido” por uma crença européia. Esqueça aqueles filmes de faroeste em que os índios queriam escalpelar os colonos mocinhos. Os coitados dos índios nem sabiam o que era tirar escalpo. Quem os ensinou foram os colonizadores.

     Veja esse trecho do livro:

Chivington ficou violentamente encolerizado e agitou seu punho perto do rosto do tenente Cramer. “Maldito seja qualquer homem que simpatize com os índios”, gritou. “Vim para matar índios e acho que é certo e honroso usar qualquer meio sob o céu do Senhor para matar índios.” (pg. 70)

     Chinvigton, meu nobre, era um Coronel, ex-pastor metodista que dedicara boa parte do seu tempo à organização de escolas dominicais nos campos de mineração.

     Nação cristã, os Estados Unidos? Quá, quá, quá. Leia o livro, leia. Depois me mande um email dizendo o que você achou. Ah, o The New York Times considerou a obra “original, memorável e comovedor… impossível de largar”. O The Washington Post foi mais longe: “Estarrecedor, arrasante... Nos perguntamos, ao ler este livro emocionante: quem, na verdade, eram os selvagens?
    
     Ei, esse livro não é de ficção, diga-se de passagem.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Criança de coleira

     Lendo o jornal Folha de São Paulo, hoje cedo, uma manchete atraiu meus bisbilhoteiros olhos. Você sabe como é jornal, não é?, com um bom título fisga o leitor. Fisga, não, prende. Fisgar remete a uma armadilha mortal. Opa, prende também não é coisa que se diga de um periódico. Prender traz a ideia de ladrão, marginal e certos políticos. Ui, que horrível. Deixa eu ver... conquista. É essa a palavra apropriada. Um bom jornal conquista quem o lê. E, venhamos e convenhamos, não é preciso ser bom para conquistar alguém. Tem muito caco conquistando pessoas para lá de disputadas. O jogo da conquista está muito acima do bom, do bonito ou do melhor. Tem horas em que ele gravita em torno da artimanha, da pura picardia. O fato é que gostei do título, achei-o interessante e mergulhei.

Coleira para crianças inspira olhares críticos e reflexões

     Gostando de criança, como gosto, e de cachorro, embora não tenha nenhum, fui impelido a ler a matéria. Na verdade, também não tenho criança. Já fui, entretanto, criança um dia. Não sou, como disse o poeta, “cachorro, não”, esclareçamos. Tudo balela. Não tenho criança, nem cachorro, mas adorei o título. Deu. Mariana Versolato, começou o texto dizendo que “Parece coleira de cachorro, mas é uma mochilinha com alça, que prende a criança à mãe”. E ela, a repórter, segue escrevendo o que alguns pais, psicólogos e quem não tem nada a ver com o assunto pensa da bendita coleira. Eu não sou contra nem a favor. Claro, não tenho criança. E acho que quem não tem deveria ficar bem calado.

     Só se eu fosse muito cínico para alardear que sou contra o uso de coleiras por esse ou aquele motivo. Não arcarei com as conseqüências diretas do uso, ou não-uso, do equipamento. Agora, vamos combinar, o que tem de cachorro andando por aí sem coleira, é uma barbaridade. Para você, leitor, não achar que estou em cima do muro, proponho que primeiramente seja colocado coleira em todos os cachorros. Só depois, que se ponha coleira na criançada. Sheid, meu cachorro virtual, sugeriu que alguns funcionários da Vigilância Sanitária fiquem de prontidão na frente da Câmara e do Senado Federal. De coleira na mão, devem encoleirar qualquer cachorro que queira entrar na duas casas. Não sei, não, mas o que vai ter de cachorro latindo...



terça-feira, 15 de março de 2011

"Copiei descaradamente"

     Já se aproximava das 12h30. Eu acabara de chegar e tinha escolhido uma mesa bem perto do bufê. O que fazer enquanto meu amigo não aparecia? Olhar pela vidraça e ver motoristas botando a mão para fora de seus templos e fazendo sinais provocativos a quem, supostamente, lhes prejudicou? Não, isso poderia tirar-me o apetite. Que tal prestar atenção em quem adentra o recinto? Que cabelo mal cortado. Olha aquele sapato, não combina com a calça. Não sei não, mas aquele casal lá do canto parece muito desconfiado. Cabelo, sapato e casal não me interessavam. Eu cairia na vala comum e, tal qual um fanático, julgaria meu próximo sem dor e sem piedade. Ao meu lado, bem sentada sobre uma cadeira, ela me olhava com aquela languidez convidativa. O leitor mais afoito, perguntará: “ela era bonita?, qual a idade dela?”. Sim, bonita e nova. Além de bonita, funcional. E, para deixar claro, novíssima. Não resisti. Vapt.
     Meti a mão na mochila recém-comprada e saquei um Gabriel Garcia. Ah, leitura deliciosa. Mais uma espiada, nova metida de mão e um marcador de texto apareceu junto com um lápis. Tem frases, paisano, que merecem a glória de um tom amarelo-esverdeado da caneta marca-texto. Agente vai lendo, lendo, lendo e “eureca”. Pode ser um aforismo, uma sacada filosófica ou mera puerilidade aflorada no teclado de um sexagenário. Mas que merece um destaque, ah, sim, merece. Quando meu companheiro de almoço chegou, eu estava com a mão na massa. “Porque tu marcas tanto teus livros?”, perguntou depois de um abraço. Expliquei e revelei um segredo: “no caso deste autor, gosto de destacar os efeitos lingüísticos que ele utiliza. Depois, imito-o nos meus textos”. Enquanto almoçávamos discutíamos sobre minha atitude. Seria um “copia e cola”. Claro que não. Uma imitação? Evidente, meu caro Watson.

     E o que é uma imitação senão um meio de assimilar as belezas alheias. Essa frase, sim, é uma cópia. Quem a cunhou foi o francês Albalat. E a imitação, ainda conforme o cara acima citado, vem da admiração. E eu imito. E atire a primeira pedra, ou faça o primeiro comentário alfinetador, quem não copia. Ora, ora, simpatia, só imita quem admira, e só admira quem enxerga beleza no alheio. O que não dá é ficar limitado à imitação de um só exemplo. Senão vira, no máximo, uma caricatura. Quando admiramos muitos, e muitos imitamos, criamos um estilo próprio e tornamo-nos nós mesmos. Tenho escutado muito sobre “originalidade” e “criatividade”. E é aí que se encontra a maternidade de tanta porcaria que permeia jornais, revistas e até livros que caem em nossas mãos. O sujeito não lê, não possui bagagem lingüística nenhuma e acha que tem “estilo próprio”. Meu filho, só quem cria a partir do nada é Deus. E como não tenho nenhuma pretensão em ser adorado, imito. O almoço estava ótimo.

"Copiei descaradamente muitos escritores, Monteiro Lobato, Viriato Correa e outros; não se incomodaram com isso e copiar me fez muito bem." Moacyr Scliar

segunda-feira, 14 de março de 2011

Um sol, pelo amor de Deus

     Dê-me um sol, pelo amor de Deus. Pode ser um fraquinho, como é o atual time do Vasco da Gama, do Figueirense e de uns tantos outros. Pode ser morno, como funcionário público desmotivado que mal abre a boca quando atende o cliente. Pode até durar pouco mais de uma hora, como o verão londrino. Importa-me apenas que seja um sol. E que sendo sol, por mais safado que seja, espante o dilúvio que se abate sobre as cidades de Santa Catarina. E que sendo sol, por mais cruel que seja, sensibilize-se com o sofrimento dos catarinenses e enxote as águas destruidoras que insistem em cair diuturnamente neste torrão.
   
      Dê-me um sol, pelo amor de Deus. Pode ser um magrinho, como o salário mínimo que mesmo raquítico insiste em durar mais de uma semana. Pode ser chato, como a torcida do Flamengo que agora quer botar Ronaldinho Gaúcho na Seleção. Pode ser imbecil, como o motorista que trafega pelo acostamento para não ficar na fila. Pode até ser sacana, como o político que investe milhões numa campanha que lhe trará vastos dividendos. Basta-me que seja um sol. E que sendo sol, ainda que mirrado, use seu “abracadabra” e faça os morros secarem. E que sendo sol, por mais chato que seja, apiede-se do Estado que recebeu imigrantes europeus sem perspectivas no século passado. E que sendo sol, ainda que estúpido, lembre-se que este pedaço de terra entre o Paraná e o Rio Grande do Sul já não suporta mais tanto aguaceiro.

    Dê-me um sol, pelo amor de Deus. Que seja sol. Pouco ou muito, quente ou morno. Dê-me um sol. Fraco ou forte, abrasivo ou ameno. Dê-me um sol e estaremos conversados. Janeiro foi pura água. Fevereiro foi uma chuvarada só. Março já ta pela metade e a chuva não esmorece. Dê-me esse danado desse sol, homem.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ivan Cachorro

     Ivan Cachorro. Só isso. E mais nada. Fiquei sem saber de quem se tratava. Vasculhando a agenda do meu celular, encontrei essa pérola. E agora? Quem é o “maledeto”? Não tenho nem um amigo cachorro. Os que tinha morreram de indigestão, creio. De qual Ivan se trataria? Ora, ora, não coloquei nenhuma informação adicional. Nem uma dica, por menor que fosse. Até conheço alguns Ivan, mas cachorro? Lembrei logo do meu amigo de futebol lá da AABB de Florianópolis, Ivan, o Terrível. Não, não seria ele. Ele é fominha, reclama o tempo todo e quer a bola só para ele. Mesmo assim, eu não o trataria com um adjetivo tão desabonador. Se bem que tem certos cachorros que são infinitamente superiores a certos homens. Um cara que não paga pensão para um filho não deve nem ser chamado de vira-lata. Seria um insulto com o coitado do pulguento. Um camarada que não respeita a mãe está longe de ser considerado um latidor. É, no máximo, o carrapato que o cão carrega.

 
     Aí me veio à mente outro Ivan, também peladeiro. Esse é mais veterano. Trata-se de Ivanzinho, chamado assim, creio eu, devido aos seus 1,61 metros de pura educação. Ex-treinador do Figueirense, jamais eu chamaria de cachorro. Lembrei de um e outro Ivan. Nada. Ora bolas, também quem mandou escrever Ivan Cachorro? O jeito era recordar alguns cachorros que conheci nos últimos anos. Fulano, pensei, era um cachorro, mas eu não anotaria o telefone dele. Sicrano, idem. Beltrano, o mesmo. E agora? Apago o Ivan Cachorro ou o deixo lá, mudo, quieto, sem dar uma latidinha sequer que o identifique? É melhor eu deixar as coisas como estão, decido. No dia em que meu telefone tocar e o identificador mostrar Ivan Cachorro, abrirei um sorriso e capricharei: Ivan, meu querido, quanto tempo!

quinta-feira, 10 de março de 2011

De Florianópolis a Chapecó

     A viagem de Florianópolis a Chapecó é - ou pelo menos tem tudo para ser - agradabilíssima. Depois de trafegar alguns quilômetros pela duplicada BR-101 no sentido Porto Alegre, pega-se a BR-282. Aí não é preciso sair mais da rodovia. Ela corta o Estado de Leste a Oeste. Alguns trechos são considerados perigosíssimos. O pior deles, segundo a maioria dos que dirigem por lá, é entre Águas Mornas e Rancho Queimado. A quantidade de acidentes alí é uma coisa de louco. É a subida da Serra Geral. E as muitas curvas, de fato, não costumam perdoar motoristas afoitos. Vamos combinar, esse papo de culpar a chuva, o asfalto e a cerração pelas colisões não está com nada. O problema é mesmo o dirigidor do veículo. Fiz os 550 quilômetros ontem. A paisagem é linda. A mudança de relevo, de vegetação e de arquitetura é de tirar o fôlego. Diz o aforismo que o bom da viagem é a viagem. Para muitos apressadinhos, o bom é chegar logo. E é aí que mora o perigo.

Que tal esta ultrapassagem?


E esta? 


O resultado de tanta imprudência é este:

o motorista do caminhão morreu na hora
O oeste é mesmo um celeiro.

A estrada disputa espaço com a lavoura

Em Chapecó, monumento homenageia o desbravador


O estádio da Chapecoense é um lugar a ser visitado. Pena que não tem uma sala de troféus para enaltecer o Verdão do Oeste. Os três troféus de campeão catarinense estão colocados num cantinho esquecido de uma pequena sala. Nem uma lojinha do clube tem no estádio.


Agora, a pergunta que não quer calar: será que eu estaria escrevendo hoje, caso tivesse bebido (álcool), fumado (maconha), ou cheirado (cocaína) antes de viajar até aqui ?

quarta-feira, 9 de março de 2011

what a wonderful world

     O carnaval no sítio foi uma farra só. Às sete e meia de sábado, logo que o preguiçoso sol venceu os morros e deu o ar da graça, Chico Buarque – ele mesmo, acredite – soltou a voz pelo nariz e atacou de Meu caro amigo. Poeta politizado, acertou em cheio no tema de abertura dos festejos de Momo. Apesar do resmungo de quem insistia em dormir mais um “cadinho”, como diz o mineiro, o cantor aproveitou o chilrear da passarada e caprichou na canção. Há quem diga que o ritmo carnavalesco é o samba. Há quem diga que é o axé. No sítio, simpatia, o som é outro. Quando meu amigo – perdoe-me, Chico Buarque, pela intimidade – declamou o verso “aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock’n’roll. Uns dias chove, noutros dias bate sol, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta. Muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça. Que a gente vai tomando e também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”, os nativos foram ao êxtase.

     Ora, ora, futebol, chuva e sol, cachaça e muita mutreta é a imagem “cuspida e escarrada” do verão tupiniquim. De saco cheio de ver um monte de idiotas recitando Ronaldinho Gaúcho, Ronaldinho Gaúcho na televisão, e sem paciência para ouvir mais um monte de sambas-enredo horrorosos, o feriadão na zona rural era, sem a menor dúvida, a melhor opção – longe da Zona. A cachaça até se fez presente; ficou, entretanto bastante decepcionada ao notar que entre os festeiros não havia um tomador de álcool sequer. Até quem acabara de retornar dos braços de Morfeu, concordou que a música escolhida para abertura da festança era a mais adequada.

     Atendendo ao chamado de quem estava na janela, Zobaida, conhecida como “boca de sorvete”, comandou o bloco. A Jérsei desceu o morro em grande estilo. As patas traseiras bailavam enquanto as dianteiras seguravam as arrobas. O séquito ensandecido acompanhava a vaca numa decida apoteótica. Apoteótica, não. Aí já seria blasfêmia. O leitor deve saber que a palavra apoteose significa tornar-se deus. E isso só acontece no Rio de Janeiro, quando o verdadeiro deus é escorraçado da cidade e homens suados e ofegantes, cercado de mulheres peladas, ou quase, são aplaudidos pela arquibancada lotada. Nessa hora, os traficantes cariocas se camuflam, a polícia corrupta se fantasia e os súditos triplamente abobados se refestelam. No sítio, o desfile é lindo, sem perder a ternura e muito menos a sensatez.

     E é assim nos quatro dias. Humanos e quase-humanos se confraternizam. A passarada, abastecida de ração não muito farta na natureza, canta até a noite cair. É a hora do estrilar de grilos tenores, do coaxar de sapos barítonos e das lanternas de xénon dos vaga-lumes. O trânsito no Três Platôs, apesar de movimentado - afinal de contas o galope dos quadrúpedes é intenso – não registra um único acidente. Pirata, o boi responsável pela ordem no pedaço, acha que isso é devido a resposta dos colegas à última campanha: “Não fume, não cheire, não beba e, por favor, não mate ninguém”.

     Chico cantou todos os dias. O 14 Bis também apareceu por lá. Luiz Gonzaga cantou até a sanfona desafinar. Até o falecido Louis Armstrong foi representado por cd que declamou what a wonderful world.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Stalin, Rokossovski e eu - unidos por um livro

     Olha, amizade, o livro é, definitivamente, a saída da humanidade. E a entrada também, ressalte-se. Diz o aforismo que “quem não lê é como quem não vê”. Acrescento: e como quem não sente; como quem não cheira; como quem não ouve; como quem não discerne entre o doce e o salgado. Não, não pretendo entrar na discussão a respeito do suporte para o livro. Pode ser impresso em brancas folhas, pode ser digital – para ser mais contextualizado -, pode até ser cuneiforme – para ser pedante. Usei “cuneiforme” só para forçar você a relembrar a origem da escrita. Aquela coisa sumeriana, tá ligado? Tolice minha. Voltemos ao livro. Estava esse escriba jogando futebol com os colegas – e com os não-colegas também – na AABB de Florianópolis, quando um trem enchuteirado descarrilou e tombou sobre minhas costas. De cristal como sou, conforme já me disseram, fui obrigado a deixar o gramado. As dores na cervical venceram a fome de bola.



     Fui para casa. E como todo bom peladeiro, tomei um analgésico e relaxante muscular. Cinco dias depois, a dor continuava, teimosa como um torcedor do Flamengo que insiste que o time dele é hexa. Estava na hora de interromper o tratamento e procurar o médico. Pierre, cadê você? Ao me receber no consultório, o sexagenário abriu o sorriso: “Conte-me tudo, embora eu já saiba que tem a ver com futebol”. Exames preliminares indicaram lesão na lombar. “Um raio X imediato e uma injeção para aliviar a dor”, condenou-me o profissional. Uma agulhada é tudo que um cara como eu teme. "É um trauma de infância", desculpo-me. Sinto o sangue gelar enquanto aguardo meu calvário. Sentado, espero a vez do suplício. Abro a mochila e saco um livro. Voltemos ao livro.



- Stalin perguntou a um deles, Konstantin Rokossovski, talvez por lhe faltarem as unhas das mãos: “Foi torturado na prisão?

- Sim, companheiro Stalin.



     A Corte do Czar Vermelho, de Simon Sebag Montefiore, descreve, conforme transcrevi acima, o encontro entre o caudilho soviético – Stalin – e um general que havia sido torturado nas tenebrosas prisões da falecida república. Lendo, pude ter uma ideia do que é sofrimento. Imagine, paisano, a dor lancinante que um vivente experimenta ao ter as unhas arrancadas com um alicate. Foi quando o enfermeiro me chamou. Empertigado, assenti com a cabeça e subi ao patíbulo. Ora, ora, o que é uma injeção frente ao sofrimento de Rokossovski?! Fechei o livro – tato -, cerrei os olhos – visão -, senti o cheiro do medicamento – olfato -, escutei o tilintar das ampolas – audição -, e senti o gosto da vitória – paladar. Quinze minutos depois, as dores começaram a fugir da minha cristalina lombar. O poder de um livro!