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quarta-feira, 9 de março de 2011

what a wonderful world

     O carnaval no sítio foi uma farra só. Às sete e meia de sábado, logo que o preguiçoso sol venceu os morros e deu o ar da graça, Chico Buarque – ele mesmo, acredite – soltou a voz pelo nariz e atacou de Meu caro amigo. Poeta politizado, acertou em cheio no tema de abertura dos festejos de Momo. Apesar do resmungo de quem insistia em dormir mais um “cadinho”, como diz o mineiro, o cantor aproveitou o chilrear da passarada e caprichou na canção. Há quem diga que o ritmo carnavalesco é o samba. Há quem diga que é o axé. No sítio, simpatia, o som é outro. Quando meu amigo – perdoe-me, Chico Buarque, pela intimidade – declamou o verso “aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock’n’roll. Uns dias chove, noutros dias bate sol, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui ta preta. Muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça. Que a gente vai tomando e também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão”, os nativos foram ao êxtase.

     Ora, ora, futebol, chuva e sol, cachaça e muita mutreta é a imagem “cuspida e escarrada” do verão tupiniquim. De saco cheio de ver um monte de idiotas recitando Ronaldinho Gaúcho, Ronaldinho Gaúcho na televisão, e sem paciência para ouvir mais um monte de sambas-enredo horrorosos, o feriadão na zona rural era, sem a menor dúvida, a melhor opção – longe da Zona. A cachaça até se fez presente; ficou, entretanto bastante decepcionada ao notar que entre os festeiros não havia um tomador de álcool sequer. Até quem acabara de retornar dos braços de Morfeu, concordou que a música escolhida para abertura da festança era a mais adequada.

     Atendendo ao chamado de quem estava na janela, Zobaida, conhecida como “boca de sorvete”, comandou o bloco. A Jérsei desceu o morro em grande estilo. As patas traseiras bailavam enquanto as dianteiras seguravam as arrobas. O séquito ensandecido acompanhava a vaca numa decida apoteótica. Apoteótica, não. Aí já seria blasfêmia. O leitor deve saber que a palavra apoteose significa tornar-se deus. E isso só acontece no Rio de Janeiro, quando o verdadeiro deus é escorraçado da cidade e homens suados e ofegantes, cercado de mulheres peladas, ou quase, são aplaudidos pela arquibancada lotada. Nessa hora, os traficantes cariocas se camuflam, a polícia corrupta se fantasia e os súditos triplamente abobados se refestelam. No sítio, o desfile é lindo, sem perder a ternura e muito menos a sensatez.

     E é assim nos quatro dias. Humanos e quase-humanos se confraternizam. A passarada, abastecida de ração não muito farta na natureza, canta até a noite cair. É a hora do estrilar de grilos tenores, do coaxar de sapos barítonos e das lanternas de xénon dos vaga-lumes. O trânsito no Três Platôs, apesar de movimentado - afinal de contas o galope dos quadrúpedes é intenso – não registra um único acidente. Pirata, o boi responsável pela ordem no pedaço, acha que isso é devido a resposta dos colegas à última campanha: “Não fume, não cheire, não beba e, por favor, não mate ninguém”.

     Chico cantou todos os dias. O 14 Bis também apareceu por lá. Luiz Gonzaga cantou até a sanfona desafinar. Até o falecido Louis Armstrong foi representado por cd que declamou what a wonderful world.

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